Esta pesquisa apoiada pelo CNPq (404132/2012-0) estuda as interações entre as formas arquitetônicas imaginárias presentes nos modelos tridimensionais das promessas do Círio de Nazaré em Belém do Pará, e nos chapéus de mestres e embaixadores do Auto do Guerreiro Alagoano, com as formas arquitetônicas presentes na arquitetura vernacular paraense e alagoana. O estudo destas interações pretende construir conhecimento sobre os fenômenos específicos da representação da arquitetura na cultura popular, no âmbito das festividades do Círio de Nazaré e do Auto do Guerreiro, e assim aprofundar o entendimento quanto às dimensões históricas e simbólicas manifestas no fazer arquitetônico real e imaginário quanto às ações de desejar, projetar e construir. A aproximação destas duas expressões brasileiras sui-generis ao universo da arquitetura é inédita, e abre novas possibilidades de entendimento do universo imaginário acerca da concepção, representação e produção da arquitetura no passado e no mundo contemporâneo.
Em Belém do Pará, na manhã do segundo domingo de outubro, em meio à multidão que segue a procissão do Círio de Nazaré, promesseiros portam sobre suas cabeças “maquetes” de casas, igrejas e barcos, que compõem uma cidade miniaturizada, uma paisagem urbana imaginária a se movimentar pelas ruas da cidade real, ritmada nas ondulações dos passos de um mar de gente que canta odes à Rainha da Amazônia:
Que ninguém os obrigue a viver sem nenhum horizonte /que eles vivam do ontem, do hoje, e em função de um depois!”.
Entre meados de dezembro e o dia de Reis (06 de janeiro), nas Alagoas, os brincantes do Guerreiro dançam seu Auto Natalino trajados com chapéus em forma de “catedrais” e zigurates, ornamentados com espelhos, miçangas, estampas e fitas coloridas, promovendo assim a cosmogonia de um mundo construído pelos artifícios dos homens, que deve atravessar a escuridão da noite para fazer raiar o dia. No canto do mestre-guerreiro e seu figurá delineia-se, então, uma paisagem onírica:
“Ô Maceió, ô beira-mar, ô há lagoas pras meninas se banhar / Ô Maceió, ô beira-mar, ô água boa das meninas se banhar. Entrei nesta casa de beleza / com delicadeza pra vim dançá / Meu figurá, na cidade de Viçosa / Noite saudosa só é noite de Natá.
Ô que saudade quando o Guerrêro partiu / quando seguiu dessa zona ispiciá / eu vou deixá tanta morena bonita / que meu coração parpita mas eu não posso levá.”
Na natureza selvagem de Belém, a construção da pólis e seu mundo artificial se faz sob os auspícios da Potnia Theron (Rainha dos Animais), Magna Mater (Grande mãe), Rainha da Amazônia:
“Mulher revestida de sol / A lua debaixo de seus pés / E na cabeça uma coroa / Nossa rainha / Enviai o vosso espírito e tudo será criado / E renovareis a face da terra”.
Em Alagoas, nas águas doces que se entregam ao mar, a Grande mãe também apresenta-se:
“A rainha do Guerreiro / a rainha da nação / fazendo entusiasmo / devagá pisa no chão. Eu sou uma Barbuleta / que venho de Maceió / dançando no mei’ da sala / fazendo meus caracó. Viva a Lira, viva a Estrela de Ouro / viva a nossa Barbuleta e a Rainha Imperiá / Olê, olá, viva nosso Índio Peri / que é dono deste arraiá.”
Nas promessas do Círio e nos chapéus dos mestres e embaixadores do Guerreiro as formas arquitetônicas que se apresentam nas cidades concretas são reinventadas, e tais objetos dialogam tanto com a memória de fazeres de outrora, quanto com o desejo vivo que move os fazeres de hoje, com vistas a outras cidades. No gestual de promesseiros e brincantes as representações da arquitetura evidenciam suas raízes em arcaicas tradições de oferendas às divindades femininas da Bacia do Mediterrâneo, desdobradas em costumes cristãos medievais, depois dispersas nas costas africanas e no novo mundo, onde transformaram-se, alternando sobrevivências, esquecimentos e invenções. No contexto urbano de Belém, e nos vários núcleos urbanos de Alagoas, as possíveis interações entre arquiteturas reais e imaginárias ampliam os entendimentos da casa, do espaço urbano, do fazer construtivo e da paisagem a um universo de expressões múltiplas, singulares, originais onde reafirma-se a primordial “dimensão poética das técnicas”: como toda ação que promove a passagem do não-ser ao ser. Interessa a este pesquisa investigar tal dimensão poética, comparativamente, nas duas condições particulares mencionadas, no Pará e em Alagoas. Para tanto, há que se considerar as interações históricas e contemporâneas que articulam a arquitetura real e a arquitetura imaginária em modelos arquitetônicos tridimensionais.
Até o momento, nos estudos que compõe as referências bibliográficas sobre o tema, as particularidades dos promesseiros do Círio foram tratadas como expressões folclóricas, restristas ao âmbito de festividades católicas dedicadas à virgem, com ênfase nos aspectos religiosos e históricos locais. Assim como o Guerreiro também em sido estudado, predominantemente, sob o enfoque do folclore com ênfase em suas dimensões musicais e coreográficas.
Esta pesquisa se propõe a aprofundar as investigações iniciadas em 2010 (CNPq 400554/2010-0) trazendo para o primeiro plano de interesse a realização de estudos aprofundados e comparativos quanto às interações entre arquiteturas reais e imaginário arquitetônico. Para tanto, a fotografia e o vídeo, continuarão a ser os principais meios empregados buscando reconhecer, na visualidade dos fenômenos, a permanência dinâmica de formas artísticas tradicionais que afloram renovadas, vivas, em movimento, no Brasil de hoje.